quinta-feira, 15 de março de 2012

O pão e a menina


(Foto: Internet)

Quando a menina ainda se encantava com as coisas, o universo era mais colorido que os atalhos para o amanhã. Num tempo onde a escola era sua maior responsabilidade, exigindo hora a se cumprir, dever pra se fazer casa e espaço para as brincadeiras. Àquela infância cabia tão bem dentro da gente e transbordava a sensação de que a vida era a única urgência possível no modo indicativo do tempo presente. Uma vida sem freios para uma imaginação flutuante.

A lancheira sempre pronta e deliciosa compartilhava seu espaço com os tatú bola do casco preto, que dobrava-se até ficar redondo, escondendo seus pés multiplicados. Camuflados, rodavam de lá pra cá dentro no interior da lancheira. Vencidos, voltavam para o jardim da casa onde o umbigo fora enterrado.

Naquelas lembranças, o pão nosso de cada dia era um martírio para a minha ideia de liberdade. Apenas queria exercer o poder de escolha em comer ou não alguma coisa, mas uma frase no sentido mais imperativo ordenava-me: coma! O sujeito ficava ali sofrendo a ação do verbo sentavam-no num banco amarelo no meio da cozinha, até que comesse o pão recheado de manteiga e açúcar. Indignado, disfarçava balançando as pernas e fingia obedecer ao comando do general, mas não comia. Aguardava qualquer oportunidade se livrar da obrigação gastronômica. Impetuosamente, lançou o primeiro pão infância para trás da máquina de lavar roupa. Misteriosamente foi criando oportunidades e repetindo a mesma ação desvalida, deixando de lado os horrores esculpidos pela fome que não sentia.

O pão, a ordem, o sujeito, a condução escolar, a escola, a infância, a máquina, todos convergiam num único ponto – o livramento das obrigações.

Desobrigada por pura subversão infantil, foi sustentando a omissão dos fatos que envolviam o pão, guardando o segredo por algumas semanas.

Um dia arrastaram a máquina de lavar roupas para limpar a cozinha, e lá desenterraram o segredo... Mais que isso: a culpa. Junto aos pães mofados, teias de aranha, sujeira, pernas soltas peludas de baratas mortas, rastros prateados do caminho das lesmas e o olhar censurando a menina, que só conseguia sentir medo. Sobre a bronca, obrigavam-na a comer um daqueles pães mofados para que não mais resolvesse as coisas na mentira. A tortura psicológica funcionou tão bem que caiu aos prantos, pediu perdão, disse que nunca mais faria isso em sua vida, o que de fato ocorreu. Ela não só, nunca mais jogou o pão ou qualquer outra coisa atrás dos cantos lugar, como também não esqueceu àqueles momentos onde havia uma criança guardada ali.

eliz pessoa

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