segunda-feira, 30 de abril de 2007

"E nem é outono no meu coração"


Foto: Bruno Garcia
Ela está sempre ali. Inevitável não percebê-la. Mal espera que a noite caia e do nada se apronta no ponto, sobre as luzes da parada.

Em evidência diante da W3, ela se pinta e borda. Desliza óleo no corpo, perfuma a pele e veste-se pra se despir mais tarde, caso a noite vingue. “Todo dia ela faz tudo sempre igual.”

Sacudida, os atalhos são os mesmos. Antes deles, ela, ainda cedo, óculos de grau que não denunciam o propósito da noite, dão ares de seriedade que em nada casam com a idéia da puta, não fosse pelo corpo miúdo, pele clara, cabelos lisos, escuros, porte baixo, pernas desnudas no micro vestido que dá passagem aos pensamentos de quem passa na pista.

Eu passo e de costume: boa noite! De retorno: boa, nega!
Pergunto se não sente frio, responde que não. Tchau! E estamos conversados.

Outro dia, outra hora, as lentes escondem-se, dando passagens aos olhos e o desempenho da moça, inibe os garotos. Ela, puta, de salto alto, põe os pés na porta do carro onde o play boy olha ‘embasbacado’ ao meio das pernas da prostituta.

Assisto num relance ao lance da rua. De perto ninguém é normal, nem ela, nem a platéia, nem nada.

De longe a passagem é a mesma e a puta sem substantivo pede um atalho, caminho do fácil. Difícil caminho.

De W em W a alguém enche o papo.

E a noite vinga sem que ninguém perceba.

domingo, 29 de abril de 2007

Hoje sou todo o silêncio contido nas madrugadas, pois as palavras calaram-me por dentro.
Por hora, me perdi, esqueci e vou levando a tarde como um jogo sem decisões...

Mais ainda torço sem desistências.

Por hora...

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Às vezes passo alguns minutos fitando-a, analisando cada pensamento perdido, sorrateiro que tenta parir algo para as brancas linhas de uma folha amarelada pelo tempo.
E todos eles vêm como personagens crônicos de minha memória digital, trazem muito de mim e levam as lembranças para as avenidas largas de minha cidade em transição, para dentro das quadras, enquadrando nossos hábitos e rotinas.
São mendigos, lavadeiras de banheiros públicos, putas paridas, malucas de todos os gêneros, bêbados, esquisitos, diferentes e iguais em nossa condição humana.
Muitos vivem aqui dentro, existindo nas minhas lembranças, enriquecendo minha vida, na extraordinária. Mas eu também sou cada um deles, quando me permito e os experimento de novo, num próximo texto, em muito de mim.
Por isso os arrisco, os desenho, pinto-os de personalidade, reescrevendo não como os vejo, mas como os sinto, sejam eles tortos ou retos. Geralmente tortos...
Porque deles são minhas palavras, operários de minha história, contadores de minha vida. São todos os lugares, estão em cada centavo desperdiçado, em cada canção “Ramalhiana”, em uma nova emoção. São rascunhos, minha inconfidência, minhas inquietações, indecências e querências. Toda minha vontade de não ser nada, sento tudo.
Por isso, me arrisco num risco, cuspindo palavras, casando hiatos, parindo textos. Pois é assim que sou e sendo a vida se manifesta pelos meus poros, nos filtros de minhas narinas, nos pêlos de minha face, nos ciclos de minha feminilidade, nas veias de meu coração.
Por isso os escrevo, porque só assim os vivo.
Porque só assim os vejo.
Porque só assim os sou.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Sábado, 21 de abril, Aniversário de Brasília – Inconfidência Mineira.
Aniversário do Pedro, que poderia ser João, Paulo, Matheus que poderia ser bíblico ou não, que acabaria em festa do mesmo jeito.
Banda tocando na grama, Totem no mundo do ouvido, crianças que se multiplicam sobre o verde, sobre os olhos. Muitas delas, quando alguém diz: “daqui pra frente vai ser assim”.
Gente conhecida perdida nos espaços de tempo, enquanto a moça, a-lá Woodstock diverte-se sem censuras sobre o caminho.
Noite caindo, céu estrelado, estrelas cadentes. Caberia um desejo caso elas não caíssem tão rápido.
Perco o instante...
“Marola” nos breus do jardim, próximo ao campo de futebol, estratégia das árvores, chute na trave de um gol sem goleiro. “Baseado” comunista na propriedade particular, que até caberia coletiva não fossem os argentinos. E num passo à frente não estamos mais no mesmo lugar, quando a Betina desanda a falar pelos cotovelos, caminha pela casa, alegra-se com as cores do quarto de outra criança, apontando-as pelo minúsculo indicador, remexendo com desenvoltura seus ombros latinos ao som da música tocante, sorrindo sem dentes, distribuindo simpatia por entre as palavras de uma língua em desenvolvimento, enquanto o pai, coruja sua cria.
Perco-me pensando seu era assim...
Paisagem refletida pelo vidro do carro, cidade de luzes acessas, latinhas de cervejas resgatadas na geladeira vazia, ambiente “entornado” na casa alegre e colorida, mesa retangular, bebidas, artesanato de feira, mãe preta, padroeira da América Latina, conversa afinada, cigarros acessos, fumaça, torpor, voz marcantes de um Guido dando o timbre às palavras, lembranças diversas, futebol e uma culpa vascaína... Silêncio pro tumulto não formar.
Um esforço para manter-me acordada e a idéia de um macarrão animando o ouvido.
Rendida, entrego os pontos e os poros.
Noite à dentro: ”madrugada chegou, o sereno caiu”, de cansaço, caí nos meus braços, sorri e dormi.
Apagada, as idéias levam-me a outras marés. Ouço ao longe, vozes animadas, portas que se abrem, cheiro de comida pronta, estômago vazio, rabiscos desgastando palavras. Mas o sono pesa mais que mil delas sobre as pálpebras que descansam coladas. E o silêncio de uma língua calada, no barulho da noite cansada.
Só recordo quando um beijo encosta a bochecha que tem uma pinta-pintada na cara, anunciando a passagem voadeira da madrugada. Deixando sobre mim, memórias e gentilezas...
eliz pessoa

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Por isso me dispo, me escondo na curva da próxima esquina, sem pretéritos, méritos ou palavras.
Por isso sou eu e entristeço nos dias frios.

sábado, 14 de abril de 2007

Amanheço e absorvo seus detalhes...
Assisto seu sono
e
Sou capaz de descrever os poros do seu rosto
Detalhes de sua barba por fazer

Impaciento-me com isso
Depois
Desrespeito seus sonhos
Deslizo as mãos pelos fios de seus cabelos
Lisos e negros

Escorrego pela epiderme de suas costas e desço ao teu sexo
Tão meu, quando dele divido...

Dos pêlos, apelo aos teus ouvidos
Anunciando indecências

E sou
Na hora em que me entras.

eliz pessoa

domingo, 8 de abril de 2007


Um dia de beira de piscina, uma preguiça espalhada à beira da cama, um corpo de mulher magro invadido pela expansão de nosso céu azulado, bem ali, onde um pouco de mim procurou abrigo, perdida pela sensação dos raios solares.

Ela, miúda, de pernas compridas, veio como quem tenta dizer algo sem dizer nada.
No silêncio da ação trabalhadora, carregando um pedaço de papel higiênico. Curiosa, cedi aos encantos de um ser tão pequeno, que de um ponto a outro fiquei vazia, sem resquícios ou palavras.

Aqui também silenciosa coisa rara pra uma língua “geminianamente” inquieta, fui lentamente invadida pelo universo dela. Devagarzinho, pacientemente, a formiga passou, deu a volta sobre o meu corpo, desceu o concreto, continuou pela grama, que, daquele ponto de vista, era enorme para ela. Não só a grama, as flores, os gatos, as pedras que pareciam montanhas rochosas. Minha cabeça deitada no chão, tudo ao mesmo tempo agora.

Meus olhos assistindo ao trabalho da formiga que veio e foi como as nuvens de chuva e meu olhar vasto, ficou pequeno diante do gesto formigueiro. Ali, entre o ser e o não ser de outras questões.

Entre o ser e o fazer, ela o fazia.

Meu mundo pintado pela grandiosidade das montanhas, engolido pela imensidão do mar, desenhado sobre a vista de outras dimensões que engolem o que sou.

No ponto de vista dela, as imagens multiplicam-se, implicando com meu olhar de saturno.
Ela seguiu, cumpriu, teceu novos caminhos, esculhambou meu olhar, cutucou minha alma com fragilidade e força, depois partiu, como se nada tivesse acontecido.

eliz pessoa

sábado, 7 de abril de 2007

Já no meio da tarde saio de lá, pego a bicicleta e rumo à toca da moça. Onze da noite, visto a capa preta, desajusto a trava das rodas da magrela. Tá frio e tímido, além do vento na cara.

Os pés vão molhar, não tem jeito e talvez a beira da cabeça também esteja condenada ao frio da água. Sigo em frente pela W2, assim fica mais fácil não pensar no caminho. Fujo das poças d'água que claramente só servem para "refrescar" todo o resto. Refrescada, mudo a rota e desvio pra W3. Busco calçadas e marquises, agora elas dão aconchego, ao menos aproximam-se da idéia.

A cidade tá cheia, embora pareça vazia, aliás, sensação somente quebrada pelo som da velocidade dos ônibus que passam tão depressa, como as horas dos dias. Sobre as rodas, mosaicos, buracos que escondem fios de telefones, relógios que registram outras idéias, valas e o cuidado para não furar, de novo, a câmara de ar com uma estúpida chave de fenda. Isso aconteceu comigo.

Nas paredes, vitrines que exibem o interior da loja, do outro lado da rua, pensões, muitas delas, carros e a pista escorregadia e desavisada.
De cá, garis-alaranjados colhem um dos processos de nossa falta de civilidade. "Boa noite?" Arrisco com eles. "Boa noite!" Respondem eles. Bancas de becos e muros desenhados de grafites, outras performances.

No Espaço Cultural Renato Russo, garotos de sobrancelhas juntas lembram os homens primatas. De parada em parada a chuva não dá trégua. Locadoras de vídeos, réplica do Mercado Municipal, Praça do Índio, restos de gente, casas, placas de mulheres recém-chegadas da Bahia, muitas delas, cruzamentos, igreja, asfalto em falso, ratos que cortam caminhos, moradores de rua enrolados em cobertores Paraíba, cadeiras de roda substituindo cabeceira de cama, frio e noite, silêncio e a velocidade suficiente para me levar até a toca.

O cansaço acumula na alma num corpo que ainda é pouco.

Quando a chuva pede passagem e passada me rendo, entrego os pontos e aceito resignadamente o último segundo.

Meia-noite, Brasília parece calada.


eliz
Muitas questões, outros olhares e a cidade “sitiada” pede passagem.
Na rua, um velho senhor sucumbe ao sol, caminha em passos curtos. Pés calçados de havaianas, o corpo vestido de terno preto e camisa puída, atravessa o estacionamento, tão lento, denso, que perco o ritmo insano da minha juventude corriqueira.
Num instante a calma atropela a pressa. Reparo lentamente o desperdiçar dos passos de pernas cansadas.

A gravidade desenha novos contornos na face do artista. Ele atravessa o caminho quando o sol inflamado do meio-dia “caloria” o preto de um velho segundo.

Um instante entre nós e o outro. Prossigo naquela imagem de velhos que extenuam, desandam, fragilizam-se e caem num salto, no útero do tempo. Permeiam mentes que ficaram aqui. Viram fantasias e sonhos. Prosseguem vivos em nós como as velas acessas em preces.

E o senhor de mãos cansadas segue até o carro, estende a chave e não abre, desiste, recua em passos tranqüilos como o tempo que se perdeu ali.

Persisto na imagem que não quer sair.

eliz

terça-feira, 3 de abril de 2007

“O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doido.
É um desinteresse mesmo. É uma doçura de burrice.
fev-69, Clarice Lispector
Era porque não tinha mais jeito. Não mais era permissível nenhum deslize a partir dali. Ela só tinha duas opções: andar na linha de sua própria vigilância, ou, andar na linha de sua própria vigilância.
Outro caminho era a falência múltipla dos fatos, o abandono do veículo no meio da estrada.
A sua indisciplina a escravizara, tornando-a suscetível a mudança do humor das marés. E afogada, a vida entregaria os pontos.
Nenhuma desculpa era perdoável. Nem o excesso de sono, nem a ausência dele, nem os momentos de descuido, nem o cansaço. Todos os abusos seriam castigados.
Imperdoavelmente sem âncoras, ou cordas, a esperança desanimara.
Porque até a esperança, vinha do verbo esperar. Pelo o menos ali.
Recrutada pelo exército de seus próprios olhos, só havia espaço para a vigilância, onde cada detalhe do dia-a-dia, os atos seriam registrados pela consciência dela mesma. E sobre circuitos internos de segurança, ela estava presa e enquadrada no sistema.
Só cabia o cuidado com as horas, o esforço a favor do tempo, as restrições “saturianas” na casa das vinte e nove transições.
Não havia tempo pra reclamar, muito menos pra repetir padrões. O único caminho era a ruptura, o desapego aos atos caducos, o escarro na falta de inovação.
Não havia tempo pra doer, nem surtos de alienação. Só a ação ariana justificava o caminho. Toda “hipocrisia-hipocondríaca”, toda ignorância seriam castigadas. E todo castigo era pouco.
Só havia tempo para as cabeças que se abrem e expandem-se, para os olhos que sentem não como coisa, mas em essência.
Tempo para novos erros e atitudes sinceras de coração.
Não há mais tempo a perder.
eliz pessoa