sábado, 30 de agosto de 2008

Atrás da porta, eles espreitam as possibilidades emanadas pelos sons vindos da copa. Sentados, suas orelhas denunciam atenção, como se tentassem decifrar os mistérios do outro lado de lá.

Alguém os assiste, percebendo os barulhos dos vizinhos, a pisada no corredor e o anúncio do jornal da noite. Em meio a tantos verbos, alguns pensamentos pensam sozinhos, depois se dilatam provocando o ser que os experimenta, enquanto outra coisa faz sombra sobre as linhas do caderno e as mãos seguem dando contorno a personalidade da letra, revelando distúrbios acentuados de alguém.

Literalmente a noite se permite, fazendo graça e arriscando a tinta de uma caneta novinha em folha, fine 0,4 - importada de Germany.

Caberiam outras cores e alguns carnavais das palavras, mas elas, muitas vezes só fazem confundir, principalmente em línguas destreinadas.

Ah, mas como é bom escrever sem princípios, salientar a mania do ser, mesmo quando a correria rouba o tempo, trapaceia a alma e saí por aí, nos devaneios das noites de uma cidade.
Mas... E se tudo terminar num segundo? E nenhum rabisco servir de atalho?
É... Nem sei o que passa num descuido-cuidado em nós.

Enquanto isso, os gatos já descobriram o mistério que havia por traz da porta e se perderam de dois olhos desfocados, míopes, quando a distância é a única palavra.

eliz pessoa

sábado, 23 de agosto de 2008

Foto: Carlos Lopes Franco

Se houvesse uma fórmula mágica, ou alguma receita para um novo bolo, eu as experimentaria, ou quem sabe um mágico botão onde, de um segundo a outro, as coisas deixassem de assombrar as maluqueis da cuca.


Mas não há receita para as coisas do tempo, e só ele é capaz de desfragmentar os instantes.
Cadê àquela alegria solta nas ruas? Ou ainda, àquela musicalidade solta no ar.
Cadê?


Agora que os livros são meus reais amigos, porque me levam para outras vidas, noutras culturas, que me trazem vertentes que não cabem em mim, e agora só há tempo para o silenciar, e o reencontro com as palavras da literatura, ou para as viagens para as entranhas do Brasil, para as cidades velhas do tempo e para a passagem de rostos anônimos, envelhecidos de histórias, remarcados pelas linhas do existir.


Eu não sei o que aconteceu aqui, mas eu não sou mais a mesma, e talvez nunca volte a ser.

eliz pessoa

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

(Foto: Ana Franco)

Escrevo para me recompor, para não morrer mais um pouco, para não me desenganar.
Ainda assim, reparto em cada texto novo rastros de minha essência desnudada em rabiscos.

Escrevo para parecer à mesma e não perecer no silêncio, nos labirintos desfragmentados ao longe. Porque não aprendi a fazer de outra forma, não sei desfalecer senão for pela palavra e suas curvas acentuadas.

Escrevo para me mostrar, depois recolho todo o texto exibido em porta de geladeira e finjo não tê-lo escrito.

Escrevo e reescrevo para, acima de tudo, aquietar o pensamento, silenciar a alma, e me encontrar comigo, fugir do mundo, das gentes, das horas.

Escrevo por puro exercício, de não saber fundo, do fundo da gente.
Para esquecer o paraíso e para ficar mais próxima da real verdade.

Escrevo a contemplar o que ficou de mim, ante de escrito.

eliz pessoa

sábado, 2 de agosto de 2008

L-a-c-u-na


foto: Bruno Abreu

É noite, e todos os gatos são pardos.
Eu me empalideço, depois amoleço com a tarde que caiu logo há pouco, sobre a linha tênue entre o horizonte e meus olhos. Não há poesia, sentimento vasto, nem imensidão sobre o céu da cidade. Assim como as nuvens rosadas, não resgatam outras memórias, nem refúgio tardio na gente.

A hora é de lacuna, deserto, livros sem palavras, papel sem rabisco, cartas não escritas.
A hora é aqui e corre nas veias da gente, respira exalada aos poros quatro desejos indecentes.

Mas hoje, não cabem desejos, nem línguas, nem nada.
Talvez mais tarde eu me recorde outra distância e esmoreça da mesma verdade.
E assim, quando tudo isso se fizer inteiro, outro dia nascera dentro e fora daqui.

Eu não me esqueci do último presente, eu não me esqueci de nada.
Embora pareça, eu não sou tão amuada, nem me esquivo fácil, nem deito tanto, nem me presto em meio a caminhos que não me pertencem.

Eu nem mesmo me lembro da última sinfonia naquela sala, porque desaprendi um texto novo, desarticulei o pensamento e desatei a lidar com a indiferença. Porque eu nunca fui indiferente a nada, nem as pessoas vendendo balas nos semáforos coloridos pelo sol, queimando testa de gente cansada, nem dos índices de miséria crescentes no mundo, nem a tudo, nem a nada.

Não aprendi um canto novo com a dor, nem me resgatei em meio a ela, nem mesmo me arrependi dos caminhos vividos. Eu não sou de ferro, nem ninguém.

Eu não ando atenta a coisas que não me interessam, nem ninguém.
Eu não tremo mais quando ar me falta, mas ainda sou tão inteira, tão vasta que não caibo só aqui... dentro da casa.

Ainda assim, eu me vingo da minha ingênua idade, e o tempo dilacera o coração, rasgando a emoção do poeta. E eu que pensava que ele tinha morrido, sufocado pela pressa do vento adentrando aos pulmões.

Eu, que tanto acreditei na inspiração da palavra para dizer a coisa certa, como se a coisa certa houvesse um dia de fato existido na vida de tanta gente.

Eu, eu, eu... A verdade é que não há mais verdades a serem ditas, muito menos proferidas em aglomerados nos centros de grandes cidades.

Não há espaço raso entre a gente... senão eu grito, ou me calo.

eliz pessoa