segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Entre tantos deles


foto: eliz pessoa

Ela só queria uma companhia a mais, pois uma espécie cotidiana de solidão a acompanhara, como um fantasma implícito no dia-a-dia. A receita de bolo para tentar resolver o problema foi a de muitos cidadãos corriqueiros, arrumar um animal para estimar.

Pensou num cachorro pelo excesso de alegria do bicho, pelo rabo balançando denunciando os fatos e pela real possibilidade de dividir os passeios fora de casa. Um amigo para todas as horas. Mas a geografia delimitava o caminho entre os quatro cantos da casa fazendo-a desistir.

Depois veio à cabeça a idéia de um furão, uma espécie de gambá importado dos States, com um chip embutido na pele. Um animal típico de tempos modernos e igualmente estranho. O furo do bicho veio no preço e na distância latente entre os dois. Abortou a opção de número dois.

Uma gata, um tanto desencantada, se insinuou aos olhos dela, fazendo charme, pedindo carinho, colo e atenção. Não poderia ser dispensada. Deixou-se envolver e quando não mais percebia, lá estava a felina, demarcando os roteiros da sala, quarto, cozinha e onde fosse possível. Lentamente seus pêlos e apelos já faziam parte da casa. Bendita era a irracionalidade da peluda gatinha.

Em meio ao decorrer dos dias, uma espécie de intimidade entre elas fora surgindo, dando forma ao sentimento de ambas, resgatando algumas lacunas quase esquecidas.

A “menina gata” de um instante para outro começou a perceber mudanças no comportamento de sua querida. A gata começara a agitar-se, esfregando-se no chão, tremendo o rabo, abaixando-o. Desprevenida, a menina-moça, que a acolhera com toda a solidão do momento, não entendia o que se passara com a felina. Tentou de tudo: termômetro debaixo do braço, bolsa d’água quente sobre os pêlos que encobriam a barriga da gata, reza, procurou por sangue e nada, nenhuma suspeita ou rastro de algum descuido com a criatura, nem melhora diante das ações.

Decidida, acordou cedo, pois precisava arrumar um médico veterinário para tentar compreender o que acontecia com a gata. Pegou-a nos braços e levou-a ao primeiro especialista de animais.

Pra lá de preocupada, contou ao veterinário todas as tentativas para melhorar o mal na gata malhada. Depois de narrar delicadamente cada ação realizada e com os olhos de quem clama por alguma justificativa plausível, silenciou.

Ele, terminado de ouvir o relato da gata-moça, não se conteve e começou uma gargalhada irresistível, depois respirou fundo e disse a ela que o “problema” da bichana era algo que também atormentava as mulheres, pelo menos uma vez ao mês. O nome daquilo era cio, sangria desatada, ciclos femininos e afins. Que ela não precisaria mais se preocupar com os sintomas, pois agora já conhecia seus sinônimos.

Aliviada, sorriu, um tanto sem graça diante de sua própria ignorância sobre a espécie que ela escolheu para criar. Comprou uma pílula contraceptiva para inibir tanta loucura num ser tão pequeno. E deu graças a Deus por não ser assim seus ciclos férteis. Pelo menos não era assim que ela os enxergava.

Passados dias, a menina resolveu suspender os métodos tratados com pílulas na felina e resolveu dar mais vida aos dias da gata. Conseguiu um casamento arranjado com um gato Persa, cinza, robusto e fino, para viver a loucuras hormonais com sua fêmea.

Foi um maior estardalhaço o encontro dos dois. Quebraram espelhos, estranharam-se, repeliram-se e se encaixaram. Ensandeceram como fazem dois animais em prol deles mesmos.

Mas depois que a felina voltou para casa, já não era mais a mesma, uma espécie de mudança em seus hábitos e principalmente em seu comportamento refletiam-se em seu olhar e pêlos.

Meses após, ela dará a luz a um macho peludo e absolutamente querido por todos da casa. Ele foi crescendo, ficando adolescente, dividindo o espaço e pedindo passagem e começou a flertar com a mãe. Quando não almejava o peito para mamar, desejava outros caminhos para brincar. E sem maiores confusões derradeiras, eles se multiplicaram e a casa tornara-se quintais de felinos, de nomes distintos, personalidade difusas, preferências, perfis, uma multiplicidade. E o que antes se chamava solidão, agora beirava o desespero.

No momento atual, tudo que ela desejava era um só minuto de vazio e silêncio nos cantos daquela casa.

eliz pessoa

terça-feira, 14 de outubro de 2008

São Luis do Maranhão

(foto: eliz pessoa)

A 35.000 pés de altura, sobrevoando o Porto Nacional, desbravando sensações, amortecendo sentimentos, cuspindo palavras e alguns devaneios do medo. Escala em Imperatriz às 23h. Olhos pesados, pálpebras cansadas e um sono beirando os abismos do silêncio, não fossem os barulhos de alguns pensamentos misturados com resquícios de sonhos.

Unhas vermelhas colorindo a escrita e uma leve “birra” com o suco artificial camuflado de laranja, contrastando a lembrança da fruta experimentada lá atrás. As putas das memórias tristes do Gabriel e outros pertences.

Na poltrona do meio, cá estou. Um tanto quanto incomodada com o cheiro de “peido” que acredito sair do sujeito ao lado, à minha direita. Uma, duas, três liberadas de flatulências me dão uma sensação de fobia latente. Explicação que justifique a condenação do sujeito como autor dos “puns”? O incomodo do cara se mexendo como se tivesse formiga no acento.


À esquerda, um maranhense radicado no Rio das maravilhas, sobrevive deixando no nordeste saudades, família e muitas lembranças.


Uma revista é dedilhada, outro livro é desbravado, joguinhos de palavras cruzadas, movimentos incansáveis no banheiro, relógio inerte no pulso, charge de Bush, olhos agora ardendo.

Até então não havia passado pela minha cabeça a idéia de pisar em terras maranhenses. Pelo menos não por agora, mas como alguma coisa de novo surgiu no percurso, eis que me delicio em São Luis, capital do estado do Maranhão.


Por aqui algumas constatações me surpreenderam, e talvez por não alimentar nenhum tipo de expectativa quanto ao lugar, o que percebi foi uma cidade limpa, do aeroporto ao centro.
Em princípio, São Luis agradou-me muito, vendo suas ruas, conversando com seu povo, sentindo o cheiro dos seus rios e mares, experimentando o Brasil.

Fui para o Centro Histórico da cidade de ladeiras e como toda história tece - paralelepípedos, casas coloridas, antigas, carregadas de coisas a serem contadas e camufladas. Bordéis, contos de Ana Jansen, fantasmas e alguns receios do passado ainda vivem na memória da gente dali.

Nas entranhas do Maranhão, outra brasilidade. Pousada Portal do Amazonas, cravada nas profundezas do Centro Histórico, casarão de 1835, uma das casas do mito Ana Jansen, que leva o nome da principal lagoa da cidade. Quando aqui entrei tive medo de dormir sozinha, muito pela energia que ainda se experimenta no lugar, onde muito negros foram aprisionados e muita maldade cometida e, muito mais, pelo fruto de minha cabeça enlouquecida por seus próprios pensamentos alucinantes.

Quem nasce aqui é ludovicence, a cidade foi colonizada pelos franceses com um misto da coroa portuguesa e resquícios dos holandeses, mas após três anos de predominância francesa os portugueses expulsam os franceses e imperam sobre a cidade, nascida próxima aos ventos que sopram mais ao norte.

É a capital nordestina mais próxima do Pará, e o que se percebe é a grande influência das misturas de raças nas gentes deste lugar. Aqui a miscigenação é concreta e exibida nas peles e nos cabelos desse povo. Na Praça Gonçalves Dias dentro do centro tombado, a visita da 2ª Feira do Livro trouxe ilustres escritores e suas confidências, bem ali onde se avista o Rio Anil, a sete metros acima do nível do mar, misto de mar, rio e mangue – muito mangue, enfeitando a vista da gente sobre a ponte que leva o nome de um dos seus filhos políticos – José Sarney. Obras políticas em época de eleição. Cidade Digital no bairro Alemanha.


São Luis é fascinante e, como diria a canção “a ilha maravilha”, de um povo muito bom de prosa, de praias extensas, areia escura, vento constante, extremo da gente, de gatos soltos por todos os lados, de histórias e marcos, de muita coisa para se contar e, acima de tudo, para se aprender.


E toda a vez que a vida me proporciona a oportunidade de conhecer lugares neste país, fica nítida a idéia de que o nosso Brasil é exuberante! Mas que talvez não saibamos tomar conta de tudo isso.
São Luis, um brinde à sua aos seus apelos!

eliz pessoa