segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O Deus de cada um


(Imagem: Google)


Cada um tem lá o Deus que concebe, eu, por exemplo, o concebo em meio a natureza, num simples passarinho, já para outros ele é amor, onisciência, onipresença e onipotência. Pra uma parcela significativa da humanidade ele está nas religiões, nos ritos escolhidos para reverenciá-lo, nos templos ou nas imagens sacro-santas da Renascença e de tantos outros períodos não menos significantes da arte e até no alto da montanha de um famoso Dedo de Deus. Tem gente que o vê tal qual sua imagem e semelhança, como um homem vivendo num templo além daqui. Deus Pai de Jesus filho. Outros acreditam que ele está sempre sentado num trono esperando o momento para julgar vivos e mortos. Tem gente que pensa que ele é inimigo número um do mal, o grande Juiz das sentenças que o homem deixou de cumprir.

Difícil é conceber a ideia de Deus em uma só coisa. Multifacetado, presente em tudo que se vê e escondido no que se sente.

Pra mim esse Deus não cabe na ideia limitada das coisas, não cabe na poltrona, no céu cheio de nuvens brancas, porque ele vai além da minha própria realidade. Empresta-se ao cheiro das coisas, ao atrevimento da vida, no passar desenfreado do tempo enclausurado num relógio de uma parede. Se doa nos animais, nas mães, nas crianças, na fúria da natureza, no prato, na alma, na dúvida, nos outros, em nós. Vive sempre espreitando vazios e questionando certezas. Presente em cada um, nos laços das amizades, no leito das famílias, na prece desesperada, no nó na garganta, no cuidado e no descuido das coisas.

O Deus de cada um cabe tanto num lamento, como num lampejo de alegria.
Esse Deus que sabe a arte de fazer-se inteiro, ainda que desfragmentado.


eliz pessoa




quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Pela terceira vez, Manu pediu pra ver o Papai Noel no shooping. A mãe a levou.
Manu é daquelas crianças da geração Z ou cristal de inteligência apurada.

Ao ver o Papai Noel Manu abre os braços, corre para os braços dele, senta-se no colo dele toda feliz e diz:

- Papai Noel! Eu voltei pra te ver!!
Papai Noel pergunta pra ela:

- Qual é o seu nome?

Manu, no alto dos seus poucos anos de infância, olha para mãe com aquela expressão um tanto quanto indignada, como quem não acredita que o bom velhinho tenha feito essa pergunta a ela, vira os olhos para a direita e esquerda, pra cima e pra baixa e responde cruzando os braços com impaciência:

- M a n u.

A menina já havia visitado o bom velhinho duas vezes só neste ano e levado o vasta listinha de presentes contemplada com alguns brinquedos e uma graviola. Isso mesmo: G-R-A-V-I-O-L-A, desejo repetido em outros Natais.

Papai Noel vira pra Manú e diz:

- Qual é o seu desejo pra presente neste Natal minha querida?

Manu perplexa, não acredita de novo que ele, além de esquecer o seu nome, também não lembrava mais da listinha que ela levara nas outras duas visitas deste ano. Respira fundo como quem tenta recuperar o fôlego e repete a lista, inclusive a graviola.

Quando a visita termina, ela pega na mão da mãe, sai pelo shopping refletindo e diz:

- Mamãe? Coitadinho do Papai Noel, tão velhinho que não lembra mais das coisas, nem do meu nome, nem da listinha... tadinho dele.

elizpessoa

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Cigarras


                                                                                                         (Imagem Google)



Elas sempre provocam aqui um sentimento de final de ano, um anseio pelas chuvas, uma vontade de se encontrar em algum canto, seja do mundo ou dentro de si mesmo, porque sempre representam algum aspecto de transformação da vida, da gente, do pensamento, dos outros, e acima de tudo das sensações que passaram longo tempo em processo de hibernação dentro de cada um de nós.

 Elas resgatam palavras escritas e experimentadas na fala, no gosto pelas coisas, no desgosto de tantas outras. Cantam pela fecundidade, pelo encontro, até cansarem, cumprirem seu papel.

As cigarras são assim, provocadoras de novas transformações.



elizpessoa

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Garis



                                                                      (Foto/fonte: Google Imagens)



Varria a rua como se estivesse num estado de transe, lixo por lixo. Daqui, observava-o no exercício de seu trabalho e imaginava seus pensamentos. Tinha uma espécie de certeza de que divagava na repetição das pessoas em jogar o lixo no chão ainda quando havia uma lixeira ao lado. É claro que a minha “espécie de certeza” só existia na minha também espécie de cabeça. Após juntar todo o lixo, pegou umas folhas amassada de jornal velho e começo a ler alguma notícia com um dia de atraso.

A rotina que cercava sua vida não era menos diferente de grande parte da população brasileira. Varria as ruas como quem varre a alma de alguma coisa há muito impregnada. Às vezes executava sua missão no automático, como uma máquina contratada para servir. Tinha um coração cheio de escapes, uma firmeza na pele herdada pela cor de sua raça. Mas andava desanimado, ainda que por instantes.

Acostumara-se às ruas, a sujeira deixada pelas pessoas pontualmente. Aprendera em seu ofício, que lugar de lixo era no lixo, pensava sempre na quantidade de resíduos que produzíamos todos os dias. Achava que um dia não haveria mais local onde jogar tanta bagaceira. Entendera que as pessoas eram as maiores colaboradoras para a continuação de seu trabalho, o que de certa forma era bom, porque sempre haveria emprego pra ele. Mas ele não queria passar a vida fazendo aquele serviço sujo, tentava encontrar outras funções onde se enquadrasse. Apoiava a greve dos garis do Rio de Janeiro, porque sentia na pele aquela verdade.

Era de poucas palavras e muito cansaço, e entendia que a existências do fardo em sua vida era suficiente para lhe roubar a fala, esconder a língua, pois embora novo, não sobrava muita energia ao final do dia. Não entendia como funcionavam aquelas mulheres tagarelas que seguem no ônibus da volta pras casas das periferias às oito da noite falando horrores, contando a vida e difamado os outros. Cansava-se de novo só de imaginar... Era alguém muitas vezes invisível a sociedade, o que de certa forma era até conveniente, assim conseguia passar observando tudo atentamente.

Seu nome era ninguém, o lixeiro ninguém, um homem ninguém, alguém acostumado ao silêncio escondido nas grandes cidades. Adaptado as curvas das ruas e calçadas, anônimo, calado e completamente perdido neste mundo cheio atalhos e alguns desencontros.

Sua escola, o lixo.
Sua missão resgatá-los.
Seu sonho, outra realidade.
Seu nome de certidão Ezequiel, nascido de uma Maria qualquer.

Filho de Deus.




elizpessoa 

sexta-feira, 28 de março de 2014

Assunto de hoje cedo no ônibus:

                                                 (Foto/Fonte: Correioweb)


Assunto de hoje cedo no ônibus: sabia que fecharam a BR com um caminhão atravessado lá na altura do Colorado? Ninguém sai e nem entra. Por todos os lados da periferia foi isso que ecoou. Os caminhões em protesto fecharam as vias do grande Colorado, Sobradinho I, Sobradinho II e Fercal. O motivo? A proibição de só circularem no horário das 17h às 19h30.

Outro dia, presa no congestionamento nosso de cada dia, observando a quantidade de caminhões que somavam mais peso ao tráfego daquela região, pensei: de fato eles poderiam ter outro acesso que não fosse àqueles das df’s citadas. Mas até onde sei não há essa outra possibilidade, então, de fato estamos: carros, ônibus, motos e caminhões presos aos limites da via que se mostram cada vez mais impotentes aos apelos do caminho. Pra piorar o problema resolveram pintar duas faixas de pedestres no balão do posto Altana. Sabemos que ali é passagem para pedestres, mas ao invés de construírem duas pequenas passarelas, optaram pela solução mais barata, prática e ineficiente no futuro. Diria que é coisa do nosso jeitinho brasileiro para “solucionar os problemas”. Esse modo de resolver a vida é tão evidente e usual que já está na campanha eleitoral veiculada na tv da cidade, como: obras do expansão do metrô para a Asa Norte, o Expresso Norte que deve levar por volta de uns 10 anos para ser concluído, isso se começar logo e sendo otimista. Um exemplo mais abrangente dessas obras vem do metrô de Salvador e nem daria para brincar com as verdades porque no raso elas doem em qualquer cidadão que trabalha duro todo dia, dependendo dos serviços públicos mal prestados e com o mínimo de vergonha na cara. Campanha do atual governo que somente agora está conseguindo entregar as obras do Expresso Brasília Sul.

Sabemos que nosso sisteminha é bem burocrático e esbarra em si mesmo, assim como compreendemos que toda grande obra pública por aqui, leva muito de nossa suada contribuição tributária para além das obras, evacuando cifras por outros ralos.

Deixando claro que a bronca deste não aponta falhas no atual Governo do DF, mas reclama de todos os governadores que Brasília contraiu através do nosso voto numa espécie de epidemia. Até onde me entendo pensando sobre as coisas e refletindo sobre a própria realidade, arrisco dizer que a vida é dura e a todo o tempo e quase sempre pede passagem.



elizpessoa

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Aos pais com carinho


                                                                 (Imagem: Google) 



Os pais geralmente querem o melhor para os filhos, desejam ao menos que estes consigam ir além de onde eles pararam, quando não almejam que faça diferente, trilhem novos caminhos dando passos mais seguros. A experiência de vida lhes deu o olhar atento ao tempo desperdiçado e ao modo como o desperdiçamos. Isso tudo é natural dentro dessa relação enorme de troca e aprendizado. O problema é que os filhos têm suas próprias experiências, repetidas ou inovadas, mas únicas e que, somente com o passar da vida é que faremos nossas próprias considerações a esse respeito.

Olhando para trás, percebo que, particularmente, o que me foi mais imposto verbalmente foi: estude para ser alguém, para não ficar na mão dos outros, para ter autonomia financeira, etc e tal. Hoje entendo o que tentavam dizer, mas a ordem me soava como imposição e não como lição de quem já havia vivenciado um pouco mais da vida. Acredito que mais por necessidade, aprendi na prática um pouco dos motivos desse discurso inflamado de vida, trabalhando dos dezessete anos até hoje sem pausa e maiores intervalos, pagando contas, assumindo responsabilidade que a vida me impôs à força e mais cedo do que eu pensara. Então, posso dizer que pouco do que almejaram pra mim aconteceu, me considerando independente dentro de meu pequeno espaço de interdependência que a sociedade cria entre as pessoas. Ninguém é tão independente como pinta, eu diria. Ando com as próprias pernas há tempos, mas voltando aos desejos maternais do início deste, quando se tem vinte anos de vida cabe tanta juventude dentro da gente que a sensação que se tem é que não vai dar tempo de usufruir tanto fôlego guardado no peito, como se tudo fosse pra hoje, como se não houvesse amanhãs. Muitas vezes há. Temos a cabeça voltada pro agora, pra urgência da hora, pra emoção do momento, onde nada é mais importante de que existir plenamente no ato. De fato é assim! Dos vinte aos trinta, diria que é o momento das plantações necessárias: estudo, estudo, estudo, trabalho, transformações, impulsos, viagens, experiências que abram a cabeça precisam ser vivenciadas para a posteridade. Abrir a cabeça para enxergar longe, vislumbrar paisagens e experimentar.

É claro que nem todos nós podemos viver essas conquistas da fase que eu chamaria dourada de nossas vidas, porque a realidade pintada é diferente para cada indivíduo.

Embora muitos digam que a vida começa aos quarenta, eu diria que a vida começa no parto, bem óbvio assim! Mas o abrir-se para a vida, com a cabeça já tentando pensar por si mesma, o que não é fácil, começa aos vinte anos. Temos aí dez anos de abertura para o mundo, pois embora sempre seja tempo de recomeçar, nem sempre se recomeça com o mesmo tempo que se tinha, até porque a vida após os trinta é mais exigente consigo mesma e nos transfere isso com: cobranças, penalidades, questionamentos diários de nossas escolhas e passos, pois sabe que não temos tanto tempo para errarmos como antes.

Quanto aos nossos pais, eles quase sempre levam a razão, mas pecam quando não dão o exemplo, pois aprendemos, enxergamos, projetamos e transferimos no exemplo, este é um senhor poderoso que torna muitos discursos vazio por falta de praticidade. Eles não são culpados, ninguém o é. Mas se um dia eu tiver um filho, e esse se me dá certo arrepio, arrisco dizer que, tentarei expor o valor de todo o tempo da vida dele, em especial, o valor dos vinte aos anos trinta, quando a juventude ainda tem muita gana de respirar o instante como se esse fosse o último. Lembrando também que ele terá o direito de escolher o seu caminho, assim como eu tive o meu. E caberá respeitá-lo com um indivíduo que pensa por si mesmo, por mais difícil que seja essa transição. Faz parte.



elizpessoa  

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

No entardecer da cidade, o céu é colorido em giz de cera.
Nada até aqui escapa a rotina dos dias e facilmente se percebe o olhar anestesiado da grande maioria, embora a vida se renove diariamente.

Haveria tempo de enxergar o novo, mesmo quando as coisas só parecem envelhecer com a gente. E por um segundo, quantos milagres acontecem sem que saibamos?

Penso em cada leitura de poesia... o tempo é dela. Tempo de arrancá-la ainda que à força de si mesmo.
É urgente a poesia do escape, algo que nos dê outro sentido, outro olhar, uma sensação perdida na correria dos dias, esquecida na pressa da vida, que não se vive.

Tempo este de se encontrar no caos em que vivemos.
Descobrir um mar dentro da gente e fugir pra alguma praia habitada ali.
O que é a vida, senão essa frágil insegurança sobre o tempo do existir.


elizpessoa

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A suposta existência



Como é o lugar 
quando ninguém passa por ele? 
Existem as coisas 
sem ser vistas? 

O interior do apartamento desabitado, 
a pinça esquecida na gaveta, 
os eucaliptos à noite no caminho 
três vezes deserto, 
a formiga sob a terra no domingo, 
os mortos, um minuto 
depois de sepultados, 
nós, sozinhos 
no quarto sem espelho? 

Que fazem, que são 
as coisas não testadas como coisas, 
minerais não descobertos - e algum dia 
o serão? 

Estrela não pensada, 
palavra rascunhada no papel 
que nunca ninguém leu? 
Existe, existe o mundo 
apenas pelo olhar 
que o cria e lhe confere 
espacialidade? 

Concretitude das coisas: falácia 
de olho enganador, ouvido falso, 
mão que brinca de pegar o não 
e pegando-o concede-lhe 
a ilusão de forma 
e, ilusão maior, a de sentido? 

Ou tudo vige 
planturosamente, à revelia 
de nossa judicial inquirição 
e esta apenas existe consentida 
pelos elementos inquiridos? 
Será tudo talvez hipermercado 
de possíveis e impossíveis possibilíssimos 
que geram minha fantasia de consciência 
enquanto 
exercito a mentira de passear 
mas passeado sou pelo passeio, 
que é o sumo real, a divertir-se 
com esta bruma-sonho de sentir-me 
e fruir peripécias de passagem? 

Eis se delineia 
espantosa batalha 
entre o ser inventado 
e o mundo inventor. 
Sou ficção rebelada 
contra a mente universa
e tento construir-me 
de novo a cada instante, a cada cólica, 
na faina de traçar 
meu início só meu 
e distender um arco de vontade 
para cobrir todo o depósito 
de circunstantes coisas soberanas. 

A guerra sem mercê, indefinida 
prossegue, 
feita de negação, armas de dúvida, 
táticas a se voltarem contra mim, 
teima interrogante de saber 
se existe o inimigo, se existimos 
ou somos todos uma hipótese 
de luta 
ao sol do dia curto em que lutamos. 



ANDRADE, Carlos Drummond de. "A paixão medida". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014




Lentamente eles aparecem desconfiados, alguns sujos, outros disfarçados. Seguem noiados como quem procura e foge de algo. Juntam-se no piscar de olhos. Seu vício, a pedra, maldita cuja. Eu fico ali olhando passivamente, observando cada movimento, cada passo escondido, cada sintonia daquela estação.

Eles aumentam em números todos os dias, enchendo o final da tarde partida, nas ruas do setor comercial sul. São muitos, iguais, indiferente a humanidade que passa. Provavelmente, entraram madrugada à dentro, experimentado a lombra da cidade adormecida. Eu sigo o caminho repetido, sigo com eles fotografados no pensamento, sabendo até quem manda e desmanda na área, sabendo quem detém a pedra e quem corre atrás dela desesperadamente. Ao fim, lá vou e eles ficam ali, à mercê de própria indiferença.


elizpessoa