segunda-feira, 26 de março de 2012

A sombra


(Foto: fonte www.rnw.nl)

Nem todos os olhares estão aptos ao que se dá fora da gente. Em meio à multidão: playboys, bêbados, mendigos, moças ousadas, drogas bandidas, bebidas derramadas, cantadas vazias, surtos derradeiros, egos em conflito, amostra grátis de um pouco de tudo.

Bem ali mesmo, conversas estranhas, papos que não se derramam facilmente em ouvidos desconhecidos, conversas requintadas, ocultismo cercadas de plano b: o universo, o homem, Deus. O poder inteiro e maldito de poucos donos de mundo. O mundo cercado por todos eles. O homem vítima de si mesmo.

Em meio à música outras ondas, nenhuma vertente renovada.
O pedal, o vento e a moça.
Os moços.

Mas um único deles louco das aparências, conversava severamente com sua sombra e dizia: Sai daqui! Você vai parar de me seguir, ou vai ver o que faço com você!
Catadores de latinha de cerveja, latinhas procuradas minunciosamente como moeda encontrada no chão de quem tem Fome de Tudo.

TUDO.

O olhar atento à alteração de consciência. A embriaguez dos outros, a sede de muitos. O vendedor desdentado de churros, o óleo sofrendo o efeito do calor, o doce de leite escorrendo sobre o açúcar das coisas amargas. O sorriso liso e sincero do vendedor. A alegria que não pede por motivo, os cria.

A vida numa noite qualquer. A cidade uma vez no caminho, nos caminhos camuflados da cidade.

A música, ela.

O homem,ele. Louco por natureza.





eliz pessoa

quinta-feira, 22 de março de 2012

Sobre o Frango da Galinha Preta


(Foto: Faceboock de André Totors)

Morava numa rua cheia de estereótipos e uns rapazes punks me chamavam a atenção. Mas um, em especial era diferente no meio deles. Ele morava no final da rua. Não sabia se eram de fato punks ou anarquistas, mas usavam calças desbotadas, rasgadas no joelho, camisa preta anarquizada com o famoso “a” cortado ao meio estampado nas costas. Carregavam uma liberdade que eu não tinha. De certo tocavam em alguma banda de garagem ou em estúdios escondidos num submundo dos bastidores do poder de uma Brasília em transição em tempo discursivo. Escondiam-se nas entranhas do Conic.

Nunca troquei uma palavra com aqueles meninos, ainda que morasse na mesma rua e por entre a plataforma inferior da rodoviária onde os via quase todos os domingos munidos de guitarra, coturnos, cabelos desfigurados por algum Edward mãos de Tim Burton.

No meu universo só cabia um olhar de admiração, sonhando um dia ser como um deles: livre, contestadora e indiferente.

Naquele tempo, escutava muitas atrocidades a respeito dos caras, como: anarquistas não tomam banho pois protestam contra o sistema, punk só serve pra anarquizar às regras já estabelecidas, gótico é tudo doido. Por aí vai. Mas o que impregnou minha ideia, foi a possível falta de banho de um protesto contra um sistema do qual não tinha nenhum conhecimento formado. Interpretava meio torto o manifesto, pois gostava de tomar banho e isso me afastava deles. Protesto que só atacava de fato o corpo do indivíduo desbanhado.

Mas eu gostava dos punks, das tatto nada democratizadas, dos cabelos desgovernados, das pernas camufladas, do bom e velho jeans, das jaquetas cheias de símbolos, das guitarras carregadas nas costas e de toda aquela confusão.

Ali era o início de minha admiração pelo punk, assim como os Jacksons Five, Raulzito e seu pluft-plaft-zumm que não ia a lugar algum, ou a tal “casa muito engraçada que não tinha teto nem nada” e toda a musicalidade que rodeava àquela experiência passageira do viver.

Depois fui crescendo e muitas imagens foram dissipadas no meio de um caminho escondido na memória. Fui me programando pra dar certo e errei muito nesse processo. Almejei outros estereótipos, outros cabelos, outra veste que escondia muito que do que eu era e foi me camuflando pra um mundo igualmente camuflado. E com o tempo descobri que um dos meus punks preferidos era um roadie e eu nem sabia o que era isso.

O reconheci organizando muitos palcos em tantos shows realizados nessa Brasília alterada pela disfunção do tempo. E agora meu sonho é ser roadie por um dia. Ficar de um lado a outro do palco, agachada, puxando fiação, ajustando o som para outros ouvidos ignorantes e aguçados. Harmonizar o palco para outras pessoas brilharem mais do que eu. Ser maestro da simplicidade.

Pelas páginas de uma infância feliz, em especial ao punk da minha rua, ao roadie da minha cidade e aos artistas do cotidiano que me ensinaram a pintar uma vida com outras cores.


eliz pessoa

Passageirostododia


(Foto tirada do site: http://www.ciclovivo.com.br)

Correria frequente. Levanta da cama, corre pra limpar a areia dos gatos e outras pequeñas cosas, bota água pra esquentar o café, ajeita os próprios desajustes, toma banho frio, lava a alma, veste a roupa, toma o café a vitamina e o pão. Guarda a marmita na mochila já apertada de outros pertences, monta na bicicleta, se despede dos gatos, da mãe e da casa. Faz uma oração corriqueira para o anjo da guarda, pede proteção com o sinal da cruz e saí orientando a cabeça para o trânsito e seus declives. Pensa na calma, pede por calma e segue em frente rumo à labuta dos dias. No caminho, confusão generalizada: carros, carros e carros. Algumas humildes bicicletas, tantas motos, vida amanhecida e notícias frequentes de ciclistas mortos.

Em meio ao caminho outros olhares, fone no ouvido, notícias da rádio, semáforos intermitentes e obras em construção, crianças nas portas das escolas, gentileza e rudezas, pensamentos alheios a tudo isso, pressa pra cumprir horário, dar conta das tais responsabilidades. Pressa pra quê? Às vezes sol, noutras chuvas pesadas, frio dentro e fora da gente. Às vezes, absolutamente nada, apenas o rio e o seu percurso firme e destemido. Quando nem isso nem o vazio nos pertence.

eliz pessoa

terça-feira, 20 de março de 2012

Todas elas


(Foto Campanha Publicitária Benetton)

Tive muitas mães: biológica, do coração, cobradora de tarefas, de leite, de colo, de levantar a palma da mão para uma censurada em algum comportamento irremediável para o futuro. Mães de afeto, de feto. Não me faltou esse amor nascido no laço do umbigo e fora dele. Mãe para as urgências financeiras, mãe de educação fundamental, mãe nova, velha, loira e morena. Mães que brigaram por mim e mãe apadrinhada, patrocinadora das viagens de férias. Mães que se fortaleciam para me auxiliarem e que discordavam sentindo ciúmes de minha atenção.

Não me faltaram AMOR dessa espécie, raro e intrasferível, alimentado por dentro e amor derramado por fora.

Amor, muitas vezes SUFOCANTE de tão grande e cercado de cuidados (muitos deles). Amor de uma, duas, três e até quatro mães diferentes.

Amor dilacerado no parto, nascido de outras histórias instituídas, experimentadas ou proibidas. Amor de MÃE que tanto se doa na gente, MÃES de tantos filhos. Mães e Mulheres, loucas e graciosas. Amor de fêmea.

Mães imaculadas, padroeiras e danadas.
Mães duras, sérias e operárias.
Mães de sexto sentido e muitos outros tatos. Marceneiras de mãos cheias, lavadoras de beira de rio, beatas e putas, devoradoras de livros e histórias e desarticuladas de expressões passageiras.

Mãe preta, branca, parda.

Não me faltou MÃE no caminho até aqui, e nenhuma delas passou por mim sem deixar vestígios mágicos de MULHER.

Nenhuma delas passou por mim sem deixar cicatrizes abertas, nenhuma delas passou e passa por mim, sem que eu as veja impregnadas no espelho todo santo dia. Nos gestos mais despercebidos, nas minhas ações mais bem pensadas, nos meus medos do amanhã, bem agora.

Nenhuma dela se solidificou em uma apenas.
Por essa razão essa multiplicidade em mim, comum de todos os gêneros.
Por essa razão não quero ser mãe tão cedo, porque não consigo me dissolver delas, da presença onipotente, onipresente, onisciente que só as mães exercem sobre a gente.

Tive muitas mães no caminho.


eliz pessoa

quinta-feira, 15 de março de 2012

O pão e a menina


(Foto: Internet)

Quando a menina ainda se encantava com as coisas, o universo era mais colorido que os atalhos para o amanhã. Num tempo onde a escola era sua maior responsabilidade, exigindo hora a se cumprir, dever pra se fazer casa e espaço para as brincadeiras. Àquela infância cabia tão bem dentro da gente e transbordava a sensação de que a vida era a única urgência possível no modo indicativo do tempo presente. Uma vida sem freios para uma imaginação flutuante.

A lancheira sempre pronta e deliciosa compartilhava seu espaço com os tatú bola do casco preto, que dobrava-se até ficar redondo, escondendo seus pés multiplicados. Camuflados, rodavam de lá pra cá dentro no interior da lancheira. Vencidos, voltavam para o jardim da casa onde o umbigo fora enterrado.

Naquelas lembranças, o pão nosso de cada dia era um martírio para a minha ideia de liberdade. Apenas queria exercer o poder de escolha em comer ou não alguma coisa, mas uma frase no sentido mais imperativo ordenava-me: coma! O sujeito ficava ali sofrendo a ação do verbo sentavam-no num banco amarelo no meio da cozinha, até que comesse o pão recheado de manteiga e açúcar. Indignado, disfarçava balançando as pernas e fingia obedecer ao comando do general, mas não comia. Aguardava qualquer oportunidade se livrar da obrigação gastronômica. Impetuosamente, lançou o primeiro pão infância para trás da máquina de lavar roupa. Misteriosamente foi criando oportunidades e repetindo a mesma ação desvalida, deixando de lado os horrores esculpidos pela fome que não sentia.

O pão, a ordem, o sujeito, a condução escolar, a escola, a infância, a máquina, todos convergiam num único ponto – o livramento das obrigações.

Desobrigada por pura subversão infantil, foi sustentando a omissão dos fatos que envolviam o pão, guardando o segredo por algumas semanas.

Um dia arrastaram a máquina de lavar roupas para limpar a cozinha, e lá desenterraram o segredo... Mais que isso: a culpa. Junto aos pães mofados, teias de aranha, sujeira, pernas soltas peludas de baratas mortas, rastros prateados do caminho das lesmas e o olhar censurando a menina, que só conseguia sentir medo. Sobre a bronca, obrigavam-na a comer um daqueles pães mofados para que não mais resolvesse as coisas na mentira. A tortura psicológica funcionou tão bem que caiu aos prantos, pediu perdão, disse que nunca mais faria isso em sua vida, o que de fato ocorreu. Ela não só, nunca mais jogou o pão ou qualquer outra coisa atrás dos cantos lugar, como também não esqueceu àqueles momentos onde havia uma criança guardada ali.

eliz pessoa

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia Internacional da Mulher, 8 de março de 2012




(Foto Eliz Pessoa)

Descansada me arrumo, pego a bicicleta e ao abrir a portaria do prédio, o vizinho bonito do edifício da frente, desce com um buquê de flores coloridas. Observo-o e tenho outro olhar de retribuição. Desviando a vista, quase tropeço num morador de rua adormecido ali. Sujo, mal cheiroso e largado. Seu sono profundo não casava com a manhã: umas flores e um maltrapilho, paradoxos dessa vida latente em duas imagens impregnadas na gente.

Em frente, o vento me intimidava indicando mudanças no céu, mas nada com o qual eu não soubesse lidar ainda que me encolhesse disfarçadamente. Movimento constante dos carros, pessoas perambulando de lá pra cá, a bicicleta disputando espaço no caminho, óculos escuros para esconder a expressão.

Uma esquina, um veículo e um motorista. Via única e sentido acertado, diante da prioridade que ali é minha. Segura, segui sem colocar os dedos nos freios da “magrela”. Ele, certo de suas ideias contagiosas me mira, entra com vontade na avenida e desacelera o carro. Rapidamente aciono os dedos afoitos no freio, controlando a bicicleta. Ele, com um sorriso sarcástico, me olha via retrovisor expressando um ar de contente. Aqui, sobre duas rodas frágeis o sangue esquenta e a língua cossa, enquanto a cabeça tenta direcionar os próximos capítulos da minha ação. Mas a razão perde o juízo e observo o desenrolar do movimento do motorista, que entra à direta, estaciona do lado de fora e depois me observa com aquele mesmo sorriso intransigente. Esquentada me expresso: “Babaca!”. Ouso sem perder o controle da bicicleta ainda em movimento. Saio resmungando como se assim eu pudesse modificar os fatos. Não os modifico, continuo esquentada e perturbada... Penso em milhões de coisas que eu deveria ter dito a ele. E dentro de mim um anjo sensato denominado razão, tenta recobrar minha consciência e me pede calma, me fazendo enxergar as coisas e me dizendo, que o que eu gostaria de ter dito para o cara, poderia trazer uma repercussão mal sucedida, como a vingança estornada do motorista em minha direção. Visualizo as ideias como num desenho de animação. Logo me lembro do personagem Pateta, num dia de trânsito. É bem daquele jeito que me senti, louca de raiva e cega dos atos.

Sigo meu caminho rumo ao trabalho. Dia Internacional da Mulher e essa foi à primeira reação que recebo! É por isso que sou contra o dia Internacional das Coisas Gastas! Todo dia era dia de índio! Todo dia deveria ser das mulheres, dos homens, das crianças, das mães, dos pais, dos sem terra, dos sem teto, dos sem nada. Todo o dia é dia santo. Nossa Senhora do Perpétuo, Socorro! Não há que se tratar melhor as mulheres por ser o dia delas, não há que se tratar o ser humano, assim como os animais porque se trata do dia deles.

Todo o dia é santo e todo santo dia eu pego minha bicicleta e faço o meu percurso. Todo o dia alguém se prevalece desfavorecendo alguém em alguma coisa. E o Dia Internacional da Mulher - um dia - deverá deixar de existir e todos os dias serão nossos, sejamos belas e feias, inteligentes e burras, de família e abastadas, com e sem dinheiro, com e sem saúde, mães e solteiras. Todos os dias serão de Vênus.

eliz pessoa

quinta-feira, 1 de março de 2012

Ela



(Foto: Internet)

Ele revira a lata, olha dentro, profundo, como quem tenta invadir o submundo da alta. Submundo da pedra branca e amarga como a rotina da gente.

Ele ali, eu aqui, olhos afoitos e amedrontados, subversão da versão alheia.

Como numa metástase a pedra espalhasse rapidamente nas avenidas da cidade, imundos e desamparados pelo medo, atordoados pelo vício, homens, mulheres, crianças definham lentamente ao revés da lentidão das palavras.

O medo de não tê-la, detê-la e emagrecer em sua nóia, como defunto vivo que teima em sobreviver em branco e preto.

Pedra defumada, verbo esgotada em si mesmo. O antídoto, o veneno dos olhar alheio, que se encolhe diante a nova verdade.

Atalhos de um ser humano pele e osso, olhos arregalado, gigante, filho dessa pátria mãe desgraçada na senzala da gente. Papel alumínio, droga e marmita pra quem ainda experimenta a fome, quando ela (ainda) vem.

Ele e a lata.

Ele e a pedra.

Ele e a lata.

Ele, os outros...

A pedra,

Os outros,

Ele, a pedra no calo da gente.
Ele e ele mesmo. Assim calado e desvairado,
Preto diante da branca pedra maldita!


eliz pessoa