quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

No entardecer da cidade, o céu é colorido em giz de cera.
Nada até aqui escapa a rotina dos dias e facilmente se percebe o olhar anestesiado da grande maioria, embora a vida se renove diariamente.

Haveria tempo de enxergar o novo, mesmo quando as coisas só parecem envelhecer com a gente. E por um segundo, quantos milagres acontecem sem que saibamos?

Penso em cada leitura de poesia... o tempo é dela. Tempo de arrancá-la ainda que à força de si mesmo.
É urgente a poesia do escape, algo que nos dê outro sentido, outro olhar, uma sensação perdida na correria dos dias, esquecida na pressa da vida, que não se vive.

Tempo este de se encontrar no caos em que vivemos.
Descobrir um mar dentro da gente e fugir pra alguma praia habitada ali.
O que é a vida, senão essa frágil insegurança sobre o tempo do existir.


elizpessoa

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A suposta existência



Como é o lugar 
quando ninguém passa por ele? 
Existem as coisas 
sem ser vistas? 

O interior do apartamento desabitado, 
a pinça esquecida na gaveta, 
os eucaliptos à noite no caminho 
três vezes deserto, 
a formiga sob a terra no domingo, 
os mortos, um minuto 
depois de sepultados, 
nós, sozinhos 
no quarto sem espelho? 

Que fazem, que são 
as coisas não testadas como coisas, 
minerais não descobertos - e algum dia 
o serão? 

Estrela não pensada, 
palavra rascunhada no papel 
que nunca ninguém leu? 
Existe, existe o mundo 
apenas pelo olhar 
que o cria e lhe confere 
espacialidade? 

Concretitude das coisas: falácia 
de olho enganador, ouvido falso, 
mão que brinca de pegar o não 
e pegando-o concede-lhe 
a ilusão de forma 
e, ilusão maior, a de sentido? 

Ou tudo vige 
planturosamente, à revelia 
de nossa judicial inquirição 
e esta apenas existe consentida 
pelos elementos inquiridos? 
Será tudo talvez hipermercado 
de possíveis e impossíveis possibilíssimos 
que geram minha fantasia de consciência 
enquanto 
exercito a mentira de passear 
mas passeado sou pelo passeio, 
que é o sumo real, a divertir-se 
com esta bruma-sonho de sentir-me 
e fruir peripécias de passagem? 

Eis se delineia 
espantosa batalha 
entre o ser inventado 
e o mundo inventor. 
Sou ficção rebelada 
contra a mente universa
e tento construir-me 
de novo a cada instante, a cada cólica, 
na faina de traçar 
meu início só meu 
e distender um arco de vontade 
para cobrir todo o depósito 
de circunstantes coisas soberanas. 

A guerra sem mercê, indefinida 
prossegue, 
feita de negação, armas de dúvida, 
táticas a se voltarem contra mim, 
teima interrogante de saber 
se existe o inimigo, se existimos 
ou somos todos uma hipótese 
de luta 
ao sol do dia curto em que lutamos. 



ANDRADE, Carlos Drummond de. "A paixão medida". Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014




Lentamente eles aparecem desconfiados, alguns sujos, outros disfarçados. Seguem noiados como quem procura e foge de algo. Juntam-se no piscar de olhos. Seu vício, a pedra, maldita cuja. Eu fico ali olhando passivamente, observando cada movimento, cada passo escondido, cada sintonia daquela estação.

Eles aumentam em números todos os dias, enchendo o final da tarde partida, nas ruas do setor comercial sul. São muitos, iguais, indiferente a humanidade que passa. Provavelmente, entraram madrugada à dentro, experimentado a lombra da cidade adormecida. Eu sigo o caminho repetido, sigo com eles fotografados no pensamento, sabendo até quem manda e desmanda na área, sabendo quem detém a pedra e quem corre atrás dela desesperadamente. Ao fim, lá vou e eles ficam ali, à mercê de própria indiferença.


elizpessoa