(Foto: Google Imagens)
Corria os olhos sobre os grafites das ruas. Fitava-os
com a intensidade própria de quem não sabe descrever um fascínio. Praticamente nascera
nas calçadas, praças, ruas estreitas e esquinas confusas. Com o tempo aprendera
a tolerar o intolerável, tendo com mais presente a segunda opção. Criara-se por
aí, feito bicho sem pedigree. Tinha alma de vira-lata. Fedia longe, deixando rastro e odor de lixo
não reciclável. Acostumara-se ao invisível, ao olhar desatento do outro, esse
mesmo olhar amedrontado pelo aspecto de farrapo humano presente em sua imagem.
De fato, nem ele mais se reconhecia diante das vidraças das lojas que refletiam
sua desgraça. Há tempos esquecera a lembrança do que fora um dia. Era melhor
assim, sem referência, sem dilacerações desnecessárias. A vida se bastava.
Gostava das ruas nas madrugadas silenciosas, obscenas,
pervertidas, solitárias, onde os sentimentos são quase sempre tão confusos como
ele. Tinha sede d'água e de vícios – muitos desses. Apaixonara-se pelo craque.
Sabia que essa paixão, muitas vezes, não tinha volta. Mas gostava de riscos.
Seu corpo era esquelético, seus olhos vazios, sua impressão do mundo
deformara-se. Perdera os dentes e o juízo. Perdera essencialmente o medo de
perder. Aprenderá a entrar no vazio de si mesmo, e nem isso resgatava algum
sentido. Às vezes lembrava-se da mãe nunca conhecida e imagina seu rosto, sua
fala... Ao pai, um eterno espaço há tempos desnecessário.
Quando a dor o acometia, ele endurecia o sentimento e
chutava a primeira pedra, com pés descamados. Sonhava em melhorar e deixar essa
realidade distante. Enxergaria no espelho, a face de um novo homem renascido
dos escombros de si mesmo. Tinha pressa por esse dia, pois conhecia a
velocidade das coisas. Tornara-se íntimo da condição apressada do tempo, e
sabia que, talvez, somente um milagre o resgataria daquela condição de
indigente, completamente indigesta.
Vez em quando pensava em Deus, principalmente ao ouvir
os gritos dos crentes de um Deus único e, provavelmente surdo. Mas logo deixara
essa ideia dos céus de lado, porque se esse cara fosse pai de todos, porque o
trataria com tanta indiferença?
A única certeza que o cobria vinha da morte que a
todos liberta. Essa senhora velha, amarga e pontual. Talvez depois, de açoitado
por ela, fosse pedir uma palavra com Deus. Chegaria de fininho, sentaria na
cadeira em frente à mesa do todo poderoso e diria que não mais queria entender
os porquês que a vida levará. Deixava-os amordaçados em outros cativeiros.
Queria pedir ao criador uma única coisa: queria dormir sem pesadelos.
elizpessoa
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