terça-feira, 3 de setembro de 2013

Nas ruas


                                                      (Foto: Google Imagens)


Corria os olhos sobre os grafites das ruas. Fitava-os com a intensidade própria de quem não sabe descrever um fascínio. Praticamente nascera nas calçadas, praças, ruas estreitas e esquinas confusas. Com o tempo aprendera a tolerar o intolerável, tendo com mais presente a segunda opção. Criara-se por aí, feito bicho sem pedigree. Tinha alma de vira-lata.  Fedia longe, deixando rastro e odor de lixo não reciclável. Acostumara-se ao invisível, ao olhar desatento do outro, esse mesmo olhar amedrontado pelo aspecto de farrapo humano presente em sua imagem. De fato, nem ele mais se reconhecia diante das vidraças das lojas que refletiam sua desgraça. Há tempos esquecera a lembrança do que fora um dia. Era melhor assim, sem referência, sem dilacerações desnecessárias. A vida se bastava.

Gostava das ruas nas madrugadas silenciosas, obscenas, pervertidas, solitárias, onde os sentimentos são quase sempre tão confusos como ele. Tinha sede d'água e de vícios – muitos desses. Apaixonara-se pelo craque. Sabia que essa paixão, muitas vezes, não tinha volta. Mas gostava de riscos. Seu corpo era esquelético, seus olhos vazios, sua impressão do mundo deformara-se. Perdera os dentes e o juízo. Perdera essencialmente o medo de perder. Aprenderá a entrar no vazio de si mesmo, e nem isso resgatava algum sentido. Às vezes lembrava-se da mãe nunca conhecida e imagina seu rosto, sua fala... Ao pai, um eterno espaço há tempos desnecessário.

Quando a dor o acometia, ele endurecia o sentimento e chutava a primeira pedra, com pés descamados. Sonhava em melhorar e deixar essa realidade distante. Enxergaria no espelho, a face de um novo homem renascido dos escombros de si mesmo. Tinha pressa por esse dia, pois conhecia a velocidade das coisas. Tornara-se íntimo da condição apressada do tempo, e sabia que, talvez, somente um milagre o resgataria daquela condição de indigente, completamente indigesta.

Vez em quando pensava em Deus, principalmente ao ouvir os gritos dos crentes de um Deus único e, provavelmente surdo. Mas logo deixara essa ideia dos céus de lado, porque se esse cara fosse pai de todos, porque o trataria com tanta indiferença?

A única certeza que o cobria vinha da morte que a todos liberta. Essa senhora velha, amarga e pontual. Talvez depois, de açoitado por ela, fosse pedir uma palavra com Deus. Chegaria de fininho, sentaria na cadeira em frente à mesa do todo poderoso e diria que não mais queria entender os porquês que a vida levará. Deixava-os amordaçados em outros cativeiros. Queria pedir ao criador uma única coisa: queria dormir sem pesadelos.



elizpessoa